quinta-feira, 21 de abril de 2011

Desde que o Samba é Samba

“O samba é pai do prazer,O samba é filho da dor,O grande poder transformador.”


É assim que Gilberto Gil e Caetano Veloso tentam definir o samba na música “Desde que o Samba é Samba”. Não é de hoje que ele é visto como um elemento muito mais que apenas estético. O samba, para muitos, não é um ritmo apenas, samba é algo que surge de dentro, como canção que expressa um estado da alma. Foi assim nos morros, nas favelas e tem sido assim nos anos em que, descendo o morro, conquistou de vez a proeminência dos ritmos brasileiros. Não é à toa que o Brasil é visto sob a égide de “país do samba”.

Desde sua origem, por muitos atribuída ao Semba africano, que era cantado e dançado numa espécie de ritual religioso, o samba traz consigo, de forma inequívoca, a alusão ao elemento divino. Deus (ou outras manifestações do “divino”) é assunto constante nas letras do bom samba brasileiro.

Portanto, para um maior diálogo com a cultura brasileira, faz-se necessário analisar os movimentos de formação do samba, sua evocação como a alma musical do brasileiro, o preconceito sofrido pelo poder do branco opressor, inclusive de orientação protestante, e a busca de caminhos para a des-demonização do samba por parte dos donos da religião, chamando-os a um diálogo franco com a cultura brasileira, em sua mais visível vertente musical.

Desta forma, nossa pesquisa pretende analisar, de forma consistente, o preconceito ao samba e suas origens negras dentro do evangelicismo brasileiro, fruto do protestantismo de missão do sul dos Estados Unidos, assim como o protestantismo de imigração, ambos brancos em sua origem e com fortes traços culturais de rejeição a qualquer coisa que tenha a sua gênese nos negros ou nos índios.

O preconceito em relação ao samba é antigo, e não um privilégio somente das igrejas cristãs. Tem sua base na discriminação racial e social constitutivas do pensamento elitista brasileiro, como nos aponta Calvani:

“A história do samba demonstra com muita clareza a tensão dos anos 20 e 30, e como um elemento cultural originalmente rejeitado pela elite, devido a suas ligações íntimas com a cultura africana, acaba por prevalecer e transforma-se em símbolo nacional.”
 Esta mesma percepção nos é apontada por Lúcio Rangel, quando ao escrever sobre a história do samba nos mostra o preconceito social e racial em um dos maiores escritores da língua portuguesa:

“O velho Machado, em um de seus contos mais conhecidos – Um Homem Célebre -, retrata o pianeiro Pestana, que pretendia realizar grandes obras e que só produzia polcas e lundus [...] Machado de Assis, homem de origem das mais humildes, procurava afastar de si tudo que cheirasse a vulgaridade, tudo o que pudesse revelar nele o menino do morro do Livramento, o ex-coroinha da Lampadosa, aristocratizando-se, cada vez mais, até o fim da vida” (4)

Junto a esse fator, quer-se também trazer à tona a alienação cultural impregnada na igreja evangélica brasileira, reflexo da sociedade globalizada e da indústria do mercado gospel, com seus ritmos comerciais, ajudados por pastores também alienados e alienadores, que mantém o povo distante das tradições culturais de seu próprio país, atribuindo à riqueza cultural brasileira traços de demonização. Puro desconhecimento e preconceito!

Ao dialogarmos com a cultura brasileira, algumas perguntas devem ser feitas: Por que o grande número de alusões ao elemento divino no samba? Qual a verdadeira motivação por trás dessa alusão? Não seria o samba, como elemento cultural, algo que revela um pouco da teologia popular? Poderíamos, através de suas canções, conhecer um pouco mais da alma religiosa brasileira? Uma coisa é certa: Deus “dá samba”!

Dá samba porque está impregnado na alma e no coração do brasileiro, desde o berço. Nossa tradição católico-romana, misturada às outras vertentes religiosas, hoje em profusão nas favelas e nos recantos de pobreza, onde surge o samba em sua mais límpida expressão, fazem com que o divino seja, desde tenra idade, fator de educação e comunicação entre as pessoas.



Levando em conta o status sociológico, onde o pobre geralmente aparece ligado à religiosidade, seja ela em qualquer vertente, pode-se perceber mais um dos fatores que levam o samba a estar unido ao elemento divino. O pobre vê em Deus a solução e a representação viva da possibilidade de saída do seu mundo de tristeza e solidão. Ou de sua alegria. Nos momentos tristes ou de festa, lá está o samba, ora como lamento, ora como festejo, como choro ou como riso!

A explosão do ritmo, em profusão e cores, dá-se, sem dúvida, em sua maior expressão de força e vitalidade, a festa popular chamada carnaval, que ao contrário do que normalmente se faz, também deve ser analisada como expressão cultural e como grito da massa excluída, muitas vezes, de nosso convívio “cristão”. Concorda-se, então, com o teólogo e cientista da religião brasileiro Jorge Pinheiro, ao afirmar que:

“... a festa é a ruptura do tempo vivido. É o momento em que o corpo deixa de ser gasto pelo tripalium e é gasto pelo prazer. Talvez por isso, o maior acontecimento relacional da afrobrasilidade é o carnaval. É o momento do contrário. Troca-se o dia pela noite, a casa pela rua. A regra é o excesso. Não é uma festa de máscaras, mas de fantasias. É uma leitura da liberdade considerada fim das regras e convenções. Vive-se o fim da miséria, o fim da escravidão, o fim do pelourinho.” (5)

Mas, se Deus “dá samba”, e se isso está na alma do brasileiro, também na alma do brasileiro estará a sua teologia, não a das grandes academias teológicas, mas aquela teologia que nasce da experiência, do cotidiano, do filho doente, do coração doído por um amor desfeito, da esperança em dias melhores, de coisas do homem.

Aqui percebe-se claramente o conceito de imago dei, em que “a queda do homem não destrói a imagem formal (a personalidade do homem), embora envolva a distorção (mas não a demolição) do conteúdo material da imagem.”(6) Também pode-se notar a idéia da “graça comum”, onde “o homem retém dentro de si uma consciência da diferença entre o certo e o errado, entre a verdade e a falsidade, entre a justiça e a injustiça, e a consciência de que ele é responsável e passível de prestar contas não meramente ao seu próximo, como também, em última análise, a Deus, seu Criador.”(7)

O samba, desta forma, revela conceitos de Deus escritos no coração humano e, ainda que distorcidos, nos mostram o que o povo entende do divino e nos possibilita um diálogo a partir desses conhecimentos previamente estabelecidos, com seus dilemas, perturbações e motivos de festa.

O Deus encarnado conhece essas dores, essas alegrias, essa esperança. Por que, então, a sua igreja fecha os olhos pra teologia que nasce do povo e se manifesta na sua cultura? E se essa manifestação cultural for o samba, ritmo dos negros e dos pobres, pior ainda! Preconceito velado ou alienação cultural? Desconhecimento de que há uma teologia popular ou inculturação, promovida pelos senhores do saber teológico do primeiro mundo?

Daí a importância de se dialogar com a cultura brasileira e, a partir desse diálogo, cientes da teologia que se manifesta nesta cultura como defende o teólogo polonês Paul Tillich, estabelecermos uma conversa afinada, saudável, onde possamos até mesmo aprender coisas novas, sob a influência desse fazer teológico inconsciente, que nasce da alma do povo brasileiro.

Deus “dá samba”, porque religião e música são paixões brasileiras. O brasileiro é religioso por formação e por nascimento. Nasce sob o signo da divindade, sob a ótica do bem e do mal na esfera religiosa, é ensinado desde pequeno a temer a Deus e a praticar a bondade. Não há como fugir dessa paixão brasileira pelo transcendente, muitas vezes em práticas que nos são distintas e até mesmo reprováveis, principalmente quando partimos de concepções fundamentalistas do protestantismo.

Cabe a todos aqueles que fazem teologia, parar para ouvir. Descer do pedestal da arrogância teológica e entender que o negro e o pobre estão, há muito tempo, nos mostrando o que pensam sobre Deus, exatamente naquilo que cantam de Deus.

Diante da igreja e dos teólogos, abre-se a oportunidade do crescimento através da conversa franca e desprovida de conceitos anteriores. Do chão da terra nasce a teologia! Da dor e do sofrimento nascem os conceitos de Deus! Do riso sem dentes do favelado pode vir o conceito da alegria que transpassa até mesmo a miséria em que ele vive.

Ou ouvimos, ou não ouvimos. Resta o conselho sábio da Palavra: “Aquele que tem ouvidos, ouça!”                                                                                                                                                   



ARNALDO FAGUNDES

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